sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

De invasões, alertas e contradições

Na última quarta-feira (23/2), o jornal O Estado de S. Paulo publicou, no caderno mensalPlaneta”, interessante matéria sobre a introdução, pelos próprios seres humanosem grande parte das vezes de maneira intencional –, de espécies exóticas que acabam fazendo, via de regra, consideráveis estragos à fauna ou à flora local.

A matéria aborda, por exemplo, o que ocorreu na Nova Zelândia, onde nada menos que 43 espécies de pássaros foram extintas por conta da introdução de dezenas de mamíferosestrangeiros”. O foco, porém, é no Brasil. Do benéfico café (rara exceção) ao pernicioso mosquito da dengue (este – imagino, visto que não ficou claro – deve ter chegado ou por descuido nosso ou por pura habilidade do inseto), a reportagem, cujo texto principal se intitula “As invasões bárbaras”, apresenta exemplos importantes e mostra como diferentes instituições têm procurado conter a disseminação, ou até mesmo extirpar, na medida do possível, vegetais como as braquiárias e animais como o mexilhão dourado da Ásia.

Três coisas me chamaram especialmente a atenção. Uma delas foi a sintética e lúcida afirmação de Sílvia Ziller, integrante do Conselho do Programa Global de Espécies Invasoras (Gisp), segundo quem “o problema desse tipo de introdução de espécies é que, quandocerto, beneficia poucos, mas, quando dá errado, prejudica muita gente”. Nada mais representativo da atitude mesquinha não poucas vezes tomada por quem coloca os negócios muito acima de todo o restante.

Igualmente merece destaque – ao menos para quem pôde folhear o jornal inteiro aquele dia – o fato de outro caderno da mesma edição (“Agrícola”) ter tratadocom outro enfoque, é claro, de cunho mais comercial – da tilápia, cuja variedade “do nilo” é mencionada como uma das espécies vilãs na matéria de “Planeta”. É verdade que o texto do suplemento dedicado aos agronegócios prudentemente aborda a questão de teor ecológico referente ao fato de ser um animal não nativo. Mas resta uma certa estranheza, além de se constatarem visões opostas entre as duas matérias do mesmo dia, tanto nos aspectos gerais como em informações pontuais, notadamente a referente aos tanques-rede, por onde “o peixe escapa pela malha e vai parar nos rios”, conforme a matéria de “Planeta”, e commalha fina para que os peixes não escapem”, segundo o “Agrícola”.

Antes de ler os textos, porém, o que me saltou aos olhos foram as chamadas nas capas tanto do jornal como de “Planeta”, ambas ilustradas com desenhos do caramujo-gigante-africano. Fizeram-me lembrar de texto que escrevi em fevereiro de 2006 para o boletim eletrônico Notícias Abradic, da Associação Brasileira de Divulgação Científica. Reproduzo abaixo o artigo, que ainda considero atual.

O paraíso tropical e os infernos locais

Jornais e sites noticiosos dos dias 07 e 08 de fevereiro estamparam com destaque, em suas seções de ciência, a descoberta de uma variedade de espécies desconhecidas ou consideradas extintas numa ilha indonésia, na região da Nova Guiné. “Um novo mundo na Indonésia”, anunciou O Estado de S. Paulo. “Novas espécies povoam ‘Édenindonésio”, salientou a Folha de S.Paulo. “Centenas de novas espécies são encontradas na Indonésia”, destacou O Globo, com um pouco mais de moderação. “Porta para o ‘Jardim do Éden’”, revelou com alarde o Jornal do Brasil. “Cientistas encontram ‘mundo perdido’ em ilha da Indonésia”, era a manchete de notícia da Reuters em alguns dos portais brasileiros.

Inegavelmente um achado precioso, empreendido por pesquisadores da ONG Conservation International e do Instituto de Ciências da Indonésia, liderados por Bruce Beehler, ornitólogo especializado em pássaros da região. (Dias depois do anúncio, ele esteve no Brasil, visitando as cataratas do Iguaçu.) Com exagero ou não, os jornais deram o destaque merecido. Afinal, trata-se de um acontecimento raro, pois não é todo dia, e em qualquer lugar, que se descobrem diferentes espécies, de rãs a mamíferos, de uma sacadaembora, é claro, tamanho levantamento demande bastante tempo, coisa que muito poucas vezes é frisada no noticiário sobre ciência, dando aos leitores a falsa impressão de que tais descobertas (palavra um tanto enganosa, diga-se de passagem) são meramente instantâneas. Bem, ao menos cumpriu-se a função de chamar a atenção...

Atenção que faltou, por sinal, para outro acontecimento extremamente importante – e graveem terras brasileiras. Não se trata de uma descoberta; ao contrário, não resultou de nenhuma pesquisa científica, mas sim de uma imprudência decorrente da ambição por lucros de pessoas que, em 1988, numa exposição agropecuária no Paraná, incentivaram a criação do caramujo-gigante-africano (Achatina fulica) como uma alternativa mais eficiente, com retorno financeiro mais rápido, ao escargô. E hoje, após descuidos no manejo da espécie, que escapou dos locais onde era criada, tornou-se uma praga. Em janeiro deste ano, por exemplo, moradores e veranistas de Ilha Comprida, no litoral sul de São Paulo, se viram cercados por inúmeros exemplares da exótica espécie, a tal ponto que um dos “passatempos” deste verão no local foi catar os caramujos, com uso de luvas, e matá-los, por afogamento ou incineração.

O caramujo-gigante-africano se espalhou, nos últimos anos, do Sul à Amazônia, em razão sobretudo da rapidez de reproduçãohermafrodita e produz até 400 ovos no auge de seu período fértil) e da inexistência de predadores naturais em terras brasileiras (o único conhecido é uma espécie de gavião da África, o qual, se trazido para , causaria ainda mais problemas). Tudo isso sem falar, é claro, da irresponsabilidade em nome do ganho financeiro rápido... Além dos desequilíbrios ecológicos de dimensões ainda desconhecidas, o Achatina fulica tem causado danos a inúmeras culturas agrícolas e é vetor de doenças graves para o ser humano, como a angiostrongilose abdominal e a meningite eosinofílica, cujos agentes são vermes hóspedes do caramujo, entre outros animais. Diante de tão impressionante quadro, vem a pergunta: quantos brasileiros ouviram falar do caramujo-gigante-africano?

Duas das mais importantes funções da divulgação científica têm sido relegadas com a ausência ou deficiência de cobertura, pela imprensa e demais meiosformais e informais – de comunicação, da infestação pelo caramujo estrangeiro: informar e educar (sem substituir o que se aprende na escola, é bom frisar, mas reforçando o conteúdo básico ensinado). A população brasileira ainda ignora a gravidade da disseminação do Achatina fulica pelo país. Talvez nem mesmo os médicos, ao se depararem com sintomas, em seus pacientes, de dor no abdômen, febre prolongada, vômitos, aumento dos eosinófilos (células que participam do sistema imunológico humano) e até mesmo perfuração intestinal, saibam identificar um quadro de angiostrongilose abdominal. Divulgar ciência não se restringe a transmitir as maravilhas da pesquisa científica, mas envolve também – e principalmentepropiciar ao cidadão ter ciência dos benefícios e dos riscos que se encontram a poucos passos de sua casa ou de seu trabalho.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Por que TransCiências?

Por que TransCiências? Quando reservei este domínio, ainda em 2010, a ideia era falar sobre temas ligados direta ou indiretamente à ciência e à transdisciplinaridade – o que continua sendo um dos principais objetivos deste blog. Dois assuntos, aliás, que me são muito caros, até porque já há alguns bons anos trabalho com divulgação científica, ao mesmo tempo em que alimento o gosto pela temática transdisciplinar e por campos do conhecimento tão interessantes quanto o da ciência, entre os quais o da espiritualidade.

De início pensei em TransCiência, no singular. Contudo, como já existia um blog, em espanhol, ocupando o endereço correspondente a essa intenção inicial, confesso que fiquei no que me parecia uma insolúvel sinuca de bico. Semanas depois, porém, me veio a “genial” ideia de acrescentar um “s” – digo genial entre aspas porque, convenhamos, é um tanto óbvia, e mesmo assim demorei a encontrar essa solução.

De qualquer modo, acabei percebendo que a pluralização do nome seria ainda mais condizente com a proposta que tracei para o blog. Em primeiro lugar, verdade seja dita, a ciência não é uma só: há várias, cada qual com suas peculiaridades. Além disso, o plural nos dá uma dimensão mais precisa do alcance da ideia de transdisciplinaridade – que, diferentemente da inter e da multidisciplinaridade, não apenas liga e reúne campos distintos, mas também os atravessa, pluralmente.

Ademais, TransCiências é ainda mais interessante, hoje entendo, porque nos faz lembrar de experiências, consciências, transcendências... Em suma, até mesmo sonoramente ficou bem melhor, o que evitou que optássemos por soluções, digamos, artificiais na escolha do endereço do blog (cheguei a pensar, por exemplo, em trans+ciencia.blogspot.com/, mas, graças às normas do serviço de hospedagem e a todos os deuses, o sinal de mais não foi aceito).

Hoje, meses após ter os primeiros vislumbres sobre o blog, vejo que TransCiências tomou forma e, tal qual uma entidade com vida própria, fez modificar minhas ideias. Mais do que falar de ciência e de transdisciplinaridade, o que realmente importa é transcender, é ir além, falar do que der na telha, do que se julgar relevante para o momento, não interessa se ligado ou não à temática inicial.

Explicados os motivos do título e a proposta do blog, resta-nos torcer para que consigamos mantê-lo em plena atividade e que os leitores, quem sabe alguns mais contumazes (aliás, por que se qualifica um leitor de contumaz? – contumaz é teimoso, diz o Aurélio...), colaborem para torná-lo ainda melhor do que neste momento o idealizamos.

Um grande abraço a todos e muitíssimo obrigado. Até a próxima postagem, espero que muito em breve.

PS - Resta-nos explicar, para não deixar quaisquer dúvidas, que este blog não terá como base, especificamente, o conceito de transciência ou trans-ciência – cunhado pelo físico nuclear norte-americano Alvin M. Weinberg (1915-2006), ao se referir a problemas que podem ser expressos cientificamente, mas não resolvidos cientificamente –, muito usado hoje entre correntes espiritualistas e/ou paracientíficas, embora ele não deixe de estar implícito em nossa proposta. Até por isso, a primeira letra “c” é maiúscula, como traço diferencial.